Retiro Vipassana ou como sobreviver a 10 dias em silêncio

O sino toca às 4 da manhã e preparo-me para o meu primeiro dia do retiro Vipassana.

Pelas 4h30 estou no Hall de meditação e meditamos até às 6h30. Toca o sino. Café da manhã e tempo livre até às 8h00. Toca o sino. Meditação até às 9h00. Toca o sino. 5 minutos de intervalo. Toca o sino. Seguem-se 15 minutos de instruções e meditação até às 11h00. Toca o sino. Hora de almoço até às 13h00. Toca o sino. Meditação até às 14h15. Toca o sino. Intervalo de 15 minutos. Toca o sino. Meditação até às 15h30. Toca o sino. Intervalo de 5 minutos. Toca o sino. Seguem-se 15 minutos de instruções e meditação até às 17h00. Toca o sino. Hora do chá até às 18h00. Toca o sino. Meditação até às 19h00. Toca o sino. Discurso do professor (em áudio) até às 20h30, seguida de meditação até às 21h00. Toca o sino.

Dirijo-me ao meu dormitório meio em choque com o dia que acabo de ter. O meu corpo dói como se tivesse sido atingido por um camião. Estabeleci uma relação de amor-ódio com um sino e estou no primeiro de 10 dias iguais. Deito-me na cama mais dura que dormi até à data, olho para o teto e penso:

Como é que eu acabei aqui? Estou basicamente num exército de meditação.

 

ALGUMAS SEMANAS ANTES

No meio da minha viagem pela Ásia decidi que queria fazer um retiro de meditação, para aprender de uma vez por todas como meditar, conectar-me comigo mesma, conviver com os monges e viver um pouco do “Comer. Rezar. Amar” da minha vida. Porque não?

Entretanto, em Koh Tao na Tailândia, um amigo falou-me sobre o retiro Vipassana que tinha feito no Nepal. Contou-me sobre os 10 dias em silêncio, todo o conhecimento que adquiriu e de como este retiro era um pouco mais restrito do que os outros.

“Restrito não é mau”, pensei. E, sem fazer mais nenhuma pesquisa sobre o assunto, sem nenhuma prática em meditação, assim decidi fazer o retiro Vipassana na minha passagem por Yangon, Myanmar.

Foi assim que acabei ali.

Sem telemóvel. Sem falar. Sem tocar. Sem olhar nos olhos. Sem ler. Sem escrever. Sem monges (havia um ou dois que na verdade estavam também a fazer o curso, o que me deixou ainda mais assustada).

E foi assim que acabei ali. Apenas eu, o nobre silêncio (silêncio do corpo, da palavra e da mente), quase 11 horas de meditação diárias e mais nove dias disso pela frente. Boa Maria! Desta vez esmeraste-te.

vipassana quarto e horário

O QUE É A VIPASSANA?

Vipassana significa “ver as coisas como elas realmente são”, é uma meditação que defende o processo de auto purificação através da auto observação.

Esta técnica de meditação indiana milenar foi ensinada pelo próprio Gautama Buddha, no entanto, atualmente o seu mestre é o professor Goenka (1924-2013), nascido na Índia e criado em Myanmar onde aprendeu a técnica com os monges que a mantiveram na sua forma mais pura.

VIPASSANA E MINDFULNESS – A DIFERENÇA

Vipassana difere da meditação mindfulness ou Samatha, no sentido em que esta última tem como foco a prática da atenção plena, utilizando como objetos a respiração ou o uso de um mantra. É uma meditação em que o objetivo é atingir a tranquilidade. Porém, a meditação Vipassana tem como foco a não reação, sendo uma meditação em que o fim é atingir a iluminação, ou enlightment.

Esta meditação consiste em longas sequências de observação e consciencialização do corpo numa ordem específica. Somos instruídos a prestar atenção a todas as sensações que florescem durante este processo sem, no entanto, nos permitirmos reagir às mesmas, não criando avidez pelas sensações boas ou rejeição pelas sensações más. Uma vez que não nos permitimos reagir ao que o corpo sente, estamos a ensinar ao nosso corpo e mente a criarem uma barreira contra a reação cega.

Por exemplo:

Se estás a observar as sensações dos ombros e sentes um pé terrivelmente dormente que até chega a doer, levas imediatamente o foco da tua mente para os ombros, ignorando totalmente a parte da tua mente que te pede desesperadamente para moveres o pé, dizendo para ti mesmo que a dor é temporária, assim como tudo na vida. Não há apego, não há reação automática. São apenas sensações que vêm e que vão.

E voilà temos a Vipassana explicada de forma muito simples.

 

O MEU TESTEMUNHO

Para minha surpresa a parte mais desafiadora não foi a de acordar às 4 da manhã ou de não comer mais nada depois do meio dia, nem mesmo a questão de não poder falar, por mais incrível que pareça.

Custou-me a falta de contacto, a carência de não ver vida a acontecer. Mas, mais do que tudo, o mais difícil foi a meditação.

DIAS 1, 2 E 3

Durante os primeiros três dias foi-nos apresentada a meditação Samatha que nos prepararia para a prática da Vipassana, esta meditação consistie em focar a atenção no triângulo que se localiza na área entre o lábio superior e as narinas.

A orientação dada baseava-se em prestar atenção à nossa respiração e no fluxo do ar que entra e sai pelas narinas. Eventualmente, iríamos ter consciência de uma sensação que poderia ser algo muito leve, como uma vibração ou dormência. E o nosso objetivo era unicamente focar-nos nessa sensação.

Assim se passaram 3 dias de desespero, em que durante 10 horas por dia tudo o que fiz foi tentar sentir as sensações subtis nas minhas narinas. 10 horas por dia. Deixem-me reforçar: 10 HORAS!

Enquanto isso, no meio destas milhões de horas de meditação, as minhas costas, o meu rabo, as minhas pernas, todo o meu corpo começou a gritar de dor. Não importava quantas almofadas colocasse de apoio, a dor era uma constante.

Acreditem que para alguém que nunca meditou, isto foi a versão mais próxima do inferno que eu conheci em vida.

A somar a isto estava o descontrole total da minha mente.

Fechava os olhos.

Respirava fundo.

Relaxava.

E nem um minuto depois começava a festa.

Tudo o que vocês possam imaginar surgia na minha mente. Foi um jogo entre passado, futuro, histórias inventadas para passar o tempo e para evitar pensar na dor, memórias de infância esquecidas a renascerem das cinzas e coisas nada a ver.

Estes foram, provavelmente, os três dias mais difíceis que tinha vivido até então.

Contudo, o tempo foi passando e com ele o turbilhão de pensamentos diários, assim como o meu corpo foi-se adaptando à realidade de passar a vida sentado ou que, de alguma maneira, aceitou a dor como uma constante. Eu iria sobreviver ao retiro vipassana.

retiro vipassana

OS RESTANTES DIAS

No quarto dia fomos introduzidos à meditação Vipassana.

Foi, portanto, com grande alegria que me despedi da relação que tinha criado com as minhas narinas, para começar a fazer o mesmo com todos os pedaços do meu corpo. Pelo menos agora tinha um mundo de metro e meio para descobrir novas sensações, menos aborrecido do que os três centímetros à volta do meu nariz!

Porém, se por um lado começava a sentir progressos em acalmar a minha mente e a tomar consciência das vibrações existentes em TODAS as partes do corpo (até na ponta da orelha), por outro lado foi-nos apresentados ao que se chama “strong determination sittingou, como lhe gosto chamar “a coisa mais fisicamente dolorosa que fiz na vida”.

A meditação de forte determinação consiste em praticar a Vipassana sem mover o corpo sob nenhuma circunstância durante uma hora. Esta vertente era realizada três vezes por dia e, acreditem, uma hora é muito tempo, principalmente quando as restantes horas são passadas na mesma posição.

Contudo, foi durante esta hora de “forte determinação” que realmente comecei a entender a Vipassana. O aprendizado por de trás da prática.

 

O APRENDIZADO

Com a prática tomei consciência das sensações existentes em todas as partes do meu corpo, das mais subtis às mais grosseiras, senti o fluxo livre de energia e vibrações de que somos feitos, mas mais importante de tudo, experienciei e entendi a impermanência.

A dor aumentava e diminuía de forma progressiva. Enquanto que numa observação interna constatava uma dor insuportável em alguma parte do corpo, prosseguia com a técnica e na observação seguinte não sentia dor nesse lugar, por vezes sentia dor num lugar novo ou em nenhum lugar.

“A dor é mesmo temporária”, pensei.

As sensações que senti no meu corpo nunca se repetiram da mesma forma. Uma observação interna nunca foi igual à outra. Tudo muda. Tudo se transforma.

Comecei a fazer a ligação do que aprendia nos discursos do professor com o processo de meditação que experienciava a cada dia.

Goenka ensinava-nos que o caminho para uma vida sem sofrimento baseia-se no entendimento de que a dor, a tristeza e o sofrimento são parte natural da vida, assim como a alegria e o prazer. No entanto, todas estas sensações são temporárias.

Portanto, se pararmos de lutar contra as coisas que não gostamos e se pararmos de nos tentar agarrar desesperadamente a coisas que gostamos, a vida torna-se mais serena.

Os sentimentos vão vir, mas tendo noção da sua impermanência, devemos observá-los sem apego ou aversão, porque tudo muda, se transforma ou desaparece e está tudo bem, porque coisas novas vão surgir nesse lugar.

Annica significa impermanência.

Que ideia tão simples, tão obvia e tão verdadeira. Era isso. Tive o meu insight. O início do meu despertar.

Já sofri por muitas coisas na vida. A maioria nunca existiu.

 

O conhecimento foi-me deixando mais serena, pelo menos os meus pensamentos de fuga haviam dissipado e, apesar de me continuar a sentir aborrecida e com dores devido às longas horas de meditação, comecei a encontrar um sentido maior na minha experiência. Porém, admito que segui contando os dias até ao fim.

vipassana

QUANDO ACHAVA QUE NÃO TERIA MAIS SURPRESAS

Quando achava que não teria mais surpresas eis que, no sétimo ou oitavo dia, começamos a meditar 3 horas por dia em pequenas “celas”.

Celas individuais de 1m x 1.50m com uns objetos estranhos pendurados.

Obvio que qualquer tentativa de meditação deu azo ao pensamento constante de como aquilo era bizarro, assim como a um pequeno entusiasmo em sair da rotina. No entanto, o entusiasmo inicial foi rapidamente substituído por tédio e saudades do Hall, pelo menos lá tinha as outras pessoas para observar durante as minhas pausas estratégias na meditação.

Gostaria de dizer que cheguei ao ponto em que gostei de meditar na cela mas isso nunca aconteceu, foi pedir demasiado de uma miúda que acabava de entrar no universo da meditação.

Da cela, só levei a aprendizagem de como consigo suportar o tédio levado ao extremo.

 

O ÚLTIMO DIA

Que felicidade!

A partir das 9h00 foi-nos permitido falar uns com os outros. Esta transição é suposto ajudar-nos a voltar ao mundo real.

Foi estranho voltar ao normal. Aos poucos, o que um dia foi um silêncio solene transformou-se em vozes, partilhas e risos.

Para mim, o que achei mais interessante foi conhecer as experiências das outras pessoas durante o retiro. Uma vez que no decorrer desses dez dias havia criado histórias na minha cabeça, sobre como as pessoas mais “próximas” de mim estariam a viver a experiência.

Resultou que, quem eu pensava que estava completamente focado estava igual ou pior que eu. E quem eu pensava que se estava nas tintas estava, na verdade, a levar a meditação a outro nível.

Achei engraçado perceber como a nossa mente cria realidades que não existem, e essa passa a ser a nossa realidade. Tudo ilusão.

Também havia um homem que, quando eu estava nas minhas paragens de meditação e me dedicava a observar os outros no hall, sem querer cruzávamos o olhar. Pensava sempre, “este deve estar a apanhar a mesma seca do que eu”. No último dia, à distância, ele sorriu-me e levantou a mão. Yep. Mais do que estarmos na mesma onda, criámos uma “conexão” sem palavras.

Estava feliz por ter aguentado os 10 dias, por ter quebrado vários dos meus limites, por tudo o que eu tinha aprendido e, principalmente, por saber que este era o início de um caminho que queria seguir. Não o de ficar uma hora sem mexer o corpo, mas de entender mais sobre a vida, a mente e o que é real.

Saí de lá a dizer que totalmente valia a experiência, mas que nunca mais a repetiria. Hoje, depois de 3 anos, acredito que a vá repetir. Quero muito viver isso tudo com todo o conhecimento que tenho agora.

 

SE TE ACONSELHARIA A IR?

COM CERTEZA!

Podem achar-me louca, mas acredito que levar-nos a extremos faz-nos criar novas perceções sobre quem somos. Ninguém evolui sentado no sofá da sala, ou a fazer exatamente as mesmas coisas que sempre fez.

A tua experiência será diferente da minha, talvez melhor, talvez pior, mais fácil ou mais difícil. Mas será a TUA experiência. O TEU aprendizado. E uma coisa te posso garantir, não vais sair do retiro iluminado \a mas também não vais sair como entraste.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS SOBRE O RETIRO VIPASSANA

No total são 12 dias, contando com o dia em que chegas e o dia em que vais embora.

Este retiro existe em vários países do mundo (inclusive Portugal) e se tiveres curiosidade ou vontade de te inscrever, podes fazê-lo através do próprio site da Vipassana , onde vais ter acesso a todas as localizações existentes e as datas dos próximos retiros.

A Vipassana é um retiro gratuito que sobrevive das doações de alunos, portanto, no final fazes uma doação conforme as tuas possibilidades.

“Que todos os Seres possam ser felizes.”